Bumba Meu Boi

Os bois de São Marçal

Dia 30 de junho é o festejo de um santo importantíssimo da cultura popular e  muito ligado aos ritos das fogueiras, como Antônio, João e Pedro. É especialmente no Maranhão que a devoção a São Marçal, o protetor do Bumba-meu-boi, é mais forte. No dia dele, em tempos não-pandêmicos,  os brincantes maranhenses fazem o tradicional encontro dos batalhões de bois de matraca, no bairro do João Paulo.

É curioso notar que, apesar do forte apelo popular, São Marçal não tem sua história oficialmente reconhecida pelo catolicismo romano institucional.

Em algumas versões, São Marçal foi o menino que entregou a Cristo o peixe e o pão que foram multiplicados para alimentar os fiéis no deserto. Teria sido batizado pelo próprio Pedro e participado da Última Ceia. Em outras, morreu no século III, depois de realizar prodígios, como converter 12 mil pessoas de uma vez só, ressuscitar defuntos, homens e bichos, apagar incêndios com um cajado e voar. É a ele que pedimos proteção quando queremos evitar incêndios e para ele acendemos, rogando pela renovação da vida, fogueiras de paneiros velhos e palhas secas.

O auto dramático do Bumba-Meu-Boi é diverso e costuma variar de acordo com a região em que é representado. O folguedo é marcado por influências da tradição portuguesa do Boi-de-Canastra, encruzilhada no Brasil pela forte presença das culturas indígena e africana. É essa dinâmica de variações que se expressa, por exemplo, no Boi Bumbá da Amazônia, no Boi Janeiro baiano; no Boi-Calemba pernambucano; no Boi-de-Mamão de Santa Catarina; no Boi-de-Jacá do interior paulista; no Boi-de-Reis do Espírito Santo; no Boi Pintadinho do Norte do Rio de Janeiro; no Boi Surubim do Ceará; e em diversas  outras manifestações que dramatizam o ciclo de vida, morte e renascimento do boi encantado.

Os bois de matraca são marcadamente influenciados pelos indígenas, com a presença do maracá, da matraca e do tambor-onça, um tipo de cuíca que imita um urro de onça ou boi. O boi de zabumba é bem marcado pela força dos instrumentos de percussão, como o tamborinho (tambor pequeno de couro), a zabumba, o bumbo e o tambor de fogo, feito de uma tora de madeira ocada a fogo e coberto por couro de boi. O boi de orquestra se caracteriza pela presença de instrumentos de sopro como saxofones, clarinetas, trombones e pistões.

Na versão mais famosa do auto do boi, a do folguedo maranhense, um escravizado, o Pai Francisco, rouba o boi para saciar o desejo da esposa, Catirina, que estava grávida e desejosa de comer a língua do bicho. O boi adoece e fica à beira da morte. O fazendeiro castiga Pai Francisco e chama pajés e curandeiros indígenas que conseguem, após várias tentativas, curar o boi, que então dança para a alegria de todos. Em outra variante, o boi morre e sua carne é repartida entre a comunidade.

Mas há o desencanto. No século XXI, a pecuária está no centro da devastação vinculada à força que o agronegócio tem mostrado. O desmatamento gerado pelas necessidades da criação, a perda da biodiversidade, a redução dos nutrientes do solo, a compactação do solo estimulada pelo deslocamento de rebanhos, a liberação de gás metano expelido na digestão dos animais como componente acelerador do aquecimento global, o uso de rações hormonais e antibióticos na alimentação do gado, o consumo elevadíssimo de água para a produção de carne bovina e suína, os problemas éticos causados pelo confinamento dos animais para o abate; são apenas algumas das questões levantadas por diversos ambientalistas e estudiosos da questão.

A brasilidade dos bois que dançam para reinventar comunitariamente a existência como festa e pertencimento parece ser a antítese de um Brasil institucional fundado na ganância, na irresponsabilidade ambiental e na devastação de tudo aquilo que poderia ser beleza, alumbramento e arte.

Boi encantado dos autos e folguedos populares, boi valente e misterioso dos cordéis, boi fantasma, boi desencantado, confinado, preparado para o abate em condições cruéis. Poucos elementos expressam – com os simbolismos de vida e morte, encanto e desencanto, que marcam a nossa formação – os paradoxos, contradições e desafios presentes nas guerras entre as brasilidades que bailam e o Brasil que mata.

Que São Marçal nos proteja e guarde no aconchego dos ritos bonitos de afirmação da vida!

Luiz Antonio Simas

Luiz Antonio Simas

É carioca, filho de mãe pernambucana e pai catarinense. É professor, historiador, escritor, educador e compositor, com trinta anos de experiência em sala de aula. É bacharel, licenciado e mestre em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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