O menino no cavalo de Jorge

Setembro é mês de se festejar São Cosme e São Damião nas igrejas, nos terreiros e ruas. No terreno fértil das crenças brasileiras, a celebração dos médicos gêmeos, martirizados por Diocleciano nos cafundós do século IV, é marcada pela circulação entre os ritos do cristianismo popular, as múltiplas áfricas e as encantarias indígenas. É a festa de sabores e saberes que se encontram para inventar certo Brasil generoso; aquele que desafia o Brasil tacanho, intransigente, fundamentalista e boçal que cotidianamente mostra os dentes com a fúria de uma vara de javalis.

A celebração de Cosme e Damião dos meus tempos de menino era marcada pelo ritual da distribuição de doces. Minha avó, como pagamento de promessa, distribuía no Jardim Nova Era, em Nova Iguaçu, centenas de saquinhos para a meninada. Uma semana antes da festa, a coisa já esquentava com a distribuição dos cartões que dariam direito aos saquinhos. O avô carimbava meticulosamente os cartões numerados com a imagem dos santos, o endereço e a data certinha da distribuição. A turma só faltava sair no cacete com golpes e voadoras de telecatch para conseguir um deles.

Os saquinhos da avó vinham com cocô-de-rato, suspiro, maria-mole, cocada, doce de abóbora, pirulito, pé de moleque, paçoca, mariola, jujubas e balas. Eles hoje levariam ao desespero os adeptos dos saquinhos descolados, saudáveis e um tiquinho tristes. Para ensacar tudo, fazíamos linha de montagem, com os doces organizados em esteiras e os saquinhos passando de mão em mão. Dar o migué e mandar alguns para o bucho era parte de um rito que periga desaparecer. A última moda agora é a da turma que compra saquinhos prontos; aqueles que poupam o tempo, mas matam a sociabilidade da preparação dos mimos e ignoram o caráter sagrado do ato de encher os saquinhos com as próprias mãos.

Há quem ache que o hábito da distribuição de doces de Cosme e Damião foi pro beleléu. Não é isso que vejo na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ainda que a coisa ande feia pra turma chegada à festa, por aqui é possível ver uma meninada driblando a cidade cada vez mais projetada para os carros, as restrições do bonde da aleluia, que sataniza os doces, e cruzar com gente pagando promessa e distribuindo saquinhos. Os terreiros de umbanda, mesmo sob risco de ataque dos fanáticos, continuam fazendo as suas giras para Dois-Dois. A igreja dedicada aos gêmeos, no Andaraí, fica parecendo até quintal em dia de samba de roda: é alegria na veia.

Faz parte também dos fuzuês a tradição do caruru dos meninos. O caruru, prato de origem indígena que se africanizou no Brasil e abrasileirou-se nas áfricas, é ofertado entre nós largamente no dia de Cosme e Damião (o costume é popularíssimo na Bahia) e encontra vínculo simbólico com o ekuru (bolinho de feijão), a comida ofertada a Ibeji, orixá que protege os gêmeos nos candomblés. Manda o preceito que o caruru seja inicialmente distribuído a sete crianças, representando Cosme e Damião e os irmãozinhos que eles ganharam por obra e graça da tradição popular: Doum, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi.

Lambuzado das recordações da meninice, me confesso especialmente fascinado pela presença do pequeno intruso entre os gêmeos: o citado Doum, aquele que nos terreiros de umbanda passeia no cavalo de Ogum e nas estátuas dos santos vendidas no Mercadão de Madureira aparece entre os mais velhos, vestido como eles. Vigora entre os iorubás tradicionais a crença de que a mãe de gêmeos que não tenha em seguida um novo filho pode endoidar. O filho que nasce depois dos gêmeos é chamado sempre de Idowu (de etimologia incerta). Vivaldo da Costa Lima, em ensaio sobre o assunto, sugere que o nome talvez venha de Owú; ciúme, em iorubá (“Cosme e Damião: O culto aos santos gêmeos no Brasil e na África”). Idowu seria, por hipótese, o pestinha com ciúmes dos irmãos mais velhos. Virou Doum no Brasil; o irmãozinho de Damião e Cosme.

O encontro entre o orixá Ibeji e os santos médicos cristãos é um golaço marcado nas encruzilhadas bonitas da vida. Doum é a crioulidade como empreendimento de invenção do mundo transgredindo o precário; ele é o menino de um Brasil possível. Encantado nas esquinas suburbanas, guri descalço na garupa do cavalo de São Jorge, é a Doum que certo Brasil oficial, pensado como um projeto de desencantamento da vida pela domesticação dos corpos nas cidades dormitórios e nos currais das celebridades parece querer matar. Não conseguirá. Ninguém há de matar um protegido pela força de São Cosme e São Damião em seu galope vadio de passeador: o Brasil moleque no alazão da lua.

Luiz Antonio Simas

Luiz Antonio Simas

É carioca, filho de mãe pernambucana e pai catarinense. É professor, historiador, escritor, educador e compositor, com trinta anos de experiência em sala de aula. É bacharel, licenciado e mestre em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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