Faz tempo que ando encafifado com uma questão que me parece central para refletir e estabelecer estratégias de luta, negociação, enfrentamento, drible, ginga, afago, política e poética, a respeito do Brasil. Um dos nós de marinheiro da nossa experiência histórica mais difíceis de desatar é o da guerra entre um projeto institucional de Brasil e aquilo que entendo por Brasilidade: uma comunidade de sentidos, afetos, sonoridades, rasuras, contradições, naufrágios, ilhas fugidias, identidades (in)viáveis, subversões cotidianas, voo de arara e picada de maribondo, saravá e samba.
Ando cada vez mais convencido de que o Brasil, na maior parte do tempo, é um empreendimento de ódio. A Brasilidade é ação e reação vital, inovadora, transgressora, contra a mortandade. Muitas vezes, a Brasilidade se manifesta nas diversas formas de construção de vida nas frestas do muro institucional erguido por aqui, produzindo incessantemente cultura.
Ressalto que encaro o campo da cultura como aquele de elaboração constante de modos de vida: formas de nascer, morrer, rezar, dançar, amar, comer, celebrar, cantar, vestir, falar, olhar, cheirar, perceber, brincar, inventar, jogar futebol, bater tambor, dobrar e desdobrar, na viração da aldeia, o terreiro- mundo.
Por culturas fresteiras entendo, portanto, aquelas que, jogando nas rachaduras dos muros institucionais – com a destreza e a arte do drible no vazio de Mané Garrincha – inventam constantemente modos garrinchados de vida que buscam a transgressão, o equilíbrio gingado, a terreirização do território, como estratégias de jogo e combate contra a mortandade produzida pelo desencanto do mundo.
Escrevo sobre isso e me recordo de uma conversa longa que tive em certa ocasião com Martinho da Vila. No meio do papo, Martinho me falou sobre a importância que as festas têm para a cultura do samba: a comunidade festeja o nascimento, festeja a vida e festeja a boa morte, celebrada nos gurufins, os velórios com comida, bebida, brincadeira e samba. Ao ouvir isso, disse a Martinho que meu avô costumava afirmar que a gente não faz festa porque a vida é fácil, mas pela razão inversa.
Quando escreveu sobre festas, o sociólogo Emile Durkhein ressaltou o papel das celebrações como espaços de reavivação de laços sociais no sentido contrário ao da dissolução social. Faço a tabelinha com o francês e ressalto a relevância das festas e ritos como instâncias de diluição da individualidade no coletivo. Em um mundo cada vez mais marcado pelo esgarçamento da vida em comunidade, a festa é uma instância possível de reconstrução do ser a partir do pertencimento ao comum.
Já que falei de Durkhein como um teórico das festas, chamo para a roda um outro pensador a respeito do assunto: Beto Sem Braço. O sambista, membro da ala dos compositores do Império Serrano e autor de inúmeros sambas consagrados, costumava dizer que o que espanta a miséria é festa. Essa miséria sugerida pelo mestre vai muito além da economia. Ela é mesmo uma miséria existencial, alimentada pelo desencanto do cotidiano, pela domesticação dos corpos, pela mercantilização absoluta da vida e pela agonia da rua como ponto de encontro em nome de uma rua vista a partir da circulação de carros e mercadorias.
Concluo ressaltando que não me fascinam ou instigam grandes feitos, a trajetória de personagens notáveis ou coisas do tipo. Sou um historiador das aparentes desimportâncias, dos fragmentos e incompletudes, das pedrinhas miudinhas da Aruanda. Na crise do Brasil, a minha rota de enfrentamento e de fuga é exatamente um mergulho mais intenso nas coisas da Brasilidade: é ela o veneno e o remédio da nossa incontornável condição de estar no mundo.